A série Retrato
Silenciado é um dos desdobramentos da viagem que realizei com minha
companheira ao sertão do Cariri. Partimos de Goiânia/GO e percorremos, de
carro, diversas cidades até Fortaleza/CE – foram mais de cinco mil quilômetros
rodados. Adentrar novos territórios, de certa forma, introduzia-me ao universo
dos retratos pintados. Histórias, prosas, mitos, devoção, sonhos, desejos,
deslumbramentos de futuros possíveis, alimento da alma.
A fotopintura é uma técnica que se iniciou com
uma base fotográfica, geralmente em papel, no qual se retoca a imagem com
pigmentos. Essa técnica caiu em desuso em razão do advento e da popularização
da fotografia digital, que abriu caminho para novos trabalhos e trocou o pincel
por programas de edição de imagem.
O surgimento da fotografia trouxe também uma
competição com a pintura. Na contemporaneidade, as duas técnicas convivem
mutuamente com seus territórios e especificidades. Essas divergências me
interessam bastante, pois comecei a trabalhar nas artes pintando, mas a
fotografia sempre teve espaço no meu processo artístico.
No início, eu fotografava os assuntos de meu
interesse, e, nesse gesto fotográfico, era como se eu estivesse fazendo
anotações de imagens para uma reflexão futura, ou seja, era a escrita de algo
que não mais poderia ser anotado em outro momento. Tratava-se de um pensamento
acerca desse gesto, e, num segundo momento, essas imagens fotográficas
dialogavam com minha pintura.
Já nesta investigação sobre fotopintura,
refotografo os retratos pintados encontrados nas salas de milagres, peças de
ex-votos, onde estão depositadas devoções, fé, agradecimentos, pedidos, curas,
sonhos...
Minha produção perpassa basicamente a temática
do corpo silenciado, e acredito que esse silenciamento seja uma enfermidade.
Trabalhar com tais imagens de ex-votos representa, em meu processo artístico,
uma possibilidade de cura. Dessa forma, coleciono imagens oriundas das cidades
de Trindade/GO, Congonhas/MG, Bom Jesus da Lapa/BA e Juazeiro do Norte/CE. Além
dos ambientes privados – as casas de todo o território nacional –, esse
material é facilmente encontrado nas rotas das romarias.
Retomando a questão da fotografia, a estética do
retrato pintado me interessa bastante, com seus fundos chapados, a pose rígida,
endurecida, intacta, imobilidade que revela o longo tempo de exposição que
outrora era exigido das pessoas para que fossem fotografadas. Penso na pose
como uma ação performática de silenciamento.
Por outro lado, a pintura manifesta-se pelo retoque
pictórico nessas imagens. Surpreendem as possibilidades que essa forma
artística alcançou, os complexos usos e sentidos que ela contempla, como nos
casos de pessoas já falecidas que “voltam à vida” ao serem retratadas de olhos
abertos, ou de viúvas com idade avançada que guardam somente imagens de seus
maridos quando jovens – o retrato pintado une essas duas imagens e
temporalidades, ou seja, uma senhora com mais de sessenta anos e um jovem de vinte
aparentam, assim, ser mãe e filho ou mesmo avó e neto. A fotopintura também
proporciona a uma pessoa com poucas posses ser retratada em trajes elegantes,
os quais ela normalmente não teria condições de adquirir.
A junção fotografia-pintura multiplicou as
possibilidades poéticas e expressões, bem como o alcance da imaginação popular.
Antes do advento da versão digital, a fotografia não era tão popular quanto nos
dias atuais, principalmente em lugares remotos do interior do país. Nesse
sentido, uma imagem de fotopintura assemelhava-se a uma peça de relicário,
ocupando lugar reservado e importante no espaço da casa, como se estivesse em
um altar. Era algo sagrado, de valor e respeito, que remetia à memória,
histórias e saberes do íntimo.
Cada situação na qual o retrato pintado é
apresentado gera uma situação, seja nas casas, como nas salas de ex-votos, seja
em livros, na memória, mas nenhuma delas pode assegurar seu significado, uma
vez que as verdades se multiplicam, ganham novos contornos, geram outras
possibilidades.
A fotografia não é somente uma representação do
passado, mas um elemento capaz de reacender a chama da memória e, pelo
conhecimento do ontem, lidar com a experiência do hoje, do agora, que tão
rapidamente passa e se torna obsoleto. Por isso, vejo na imagem fotográfica essa
tão tênue e indissociável relação com as temporalidades da vida e da morte.
Ao utilizar a enciclopédia como suporte para as
pinturas, exploro as ideias de sistematização e materialização do conhecimento
científico presentes em cada livro da coletânea. Assim, crio para cada personagem,
e tudo o que traz consigo, uma história de protagonismo e autoria, reelaborada
nas capas dessa publicação universal.
Referências
sobre fotopintura
CÂMARA viajante. Direção: Joe Pimentel.
Roteiro: Joe Pimentel e Isabela Veras. Fotografia: Eusélio Gadelha.
Fortaleza: Trio Filmes, 2007. 1 DVD (20 min), son., color., 35 mm.
PARR, Martin; RIEDL, Titus. Retratos pintados. Portland, OR:
Nazraeli Press, 2010.
PINACOTECA do Estado de São Paulo. Interior profundo: Mestre Júlio Santos. São Paulo, 2010. Catálogo.
RIEDL, Titus. Últimas lembranças: retratos da morte, no Cariri, região do
Nordeste Brasileiro. São Paulo: Annablume; Fortaleza: Secult, 2002.
SANTOS, Júlio. Júlio Santos: mestre da fotopintura. Fortaleza: Tempo D’Imagem,
2010.
(Revisão e tradução: Gisele Dionísio da
Silva)
Silenced Portrait
The Silenced Portrait series unravels itself
from the journey I embarked on, together with my wife, to the hinterland of
Cariri, Brazil. We left Goiânia, Goiás state, and drove past several cities
before arriving in Fortaleza, Ceará state – a journey spanning more than 5,000
kilometres. Entering new territories introduced me, to a certain extent, to the
world of painted portraits. Stories, narratives, myths, worship, dreams,
wishes, foresights of possible futures, ways to nurture the soul.
Photo painting is a
technique that adopted a photographic basis in its early days, normally on
paper, on which the image was retouched with pigments. This technique fell into
disuse with the advent and growing popularity of digital photography, which
promoted new possibilities of work with photography and replaced the brush with
image-editing software.
The rise of digital
photography also brought to the fore a competition with painting. In
contemporaneity, both techniques coexist with each other’s territories and
specificities. These divergences are of great interest to me, given that my
first involvement with the arts was through painting, but photography always
had a place in my artistic process.
In the early days,
I captured topics which interested me, and, through this photographic gesture,
it was as if I was taking notes of images for later, i.e. I was writing
something which could not be written down in any other instant. It was a
particular thought about such gesture and, at a later time, these photographic
images established a dialogue with my painting.
In this current
investigation of photo painting, I capture once again the painted portraits
found in “miracle rooms” (salas dos
milagres) – ex-voto offerings, in
which people deposit their worship, faith, thanks, wishes, healings, dreams...
My work basically
encompasses the theme of the silenced body, and I believe such silence is an
illness. Working with ex-voto images
represents a healing possibility within my artistic process. Therefore, I have collected
images from the cities of Trindade (Goiás), Congonhas (Minas Gerais), Bom Jesus
da Lapa (Bahia), and Juazeiro do Norte (Ceará). This material is easily found
in pilgrimage routes as well as in private spaces, i.e. homes spread throughout
the country.
Back to photography,
the aesthetics of the painted portrait is of great interest to me, due to its
plain background, the rigid, hardened, intact pose, whose immobility reveals
the long exposure people being photographed were submitted to in the early days
of photography. I regard pose as a performing act of silence.
On the other hand,
painting manifests itself through these images’ pictorial retouch. Surprising
are the possibilities which this artistic form has reached, the complex uses
and meanings it beholds, as in the case of deceased people who ‘come back to
life’ by being portrayed with their eyes open, or in the case of elderly widows
who keep only images of their husbands in their youth – the painted portrait
unites these two images and temporalities, i.e. an old woman over sixty years
old and a young man of twenty appear to be, hence, mother and son or even
grandmother and grandson. Photo painting also makes it possible for a poor
person to be portrayed in elegant clothes which he/she would not normally be able
to afford.
The photography–painting
conjunction has multiplied poetic possibilities and expressions, as well as
stretched the reach of popular imagination. Before the advent of its digital
version, photography was not as popular as it is nowadays, particularly in
remote areas of inland Brazil. Hence, a photo painting resembled a shrine object
in those days, occupying a valued and reserved part of the house, as if standing
on an altar. It was sacred, valuable, and respectable, and referred to memories,
stories, and intimate wisdom.
Each situation in
which a painted portrait is presented produces another, be it in houses, in ex-voto rooms, in books or in memories.
However, none of them may ensure a portrait’s meaning because truths can be
multiplied, gain new contours, generate other possibilities.
Photography is not
simply a representation of the past, but an element capable of rekindling the
flame of memory and, based on yesterday’s knowledge, deal with the experience
of today, of the present, which fleetingly passes and becomes obsolete. That is
the reason why I capture in photographic images this slender and indissociable
relationship with temporalities of life and death.
By using an
encyclopedia as supporting material for the paintings, I explore the notions of
systematization and materialization of scientific knowledge which mark each
book in the collection. Hence I create for each character, and everything
he/she brings along, a story of protagonism and authorship, reformulated on the
covers of this universal publication.
Works
on Photo Painting
CÂMARA viajante. Direção: Joe Pimentel. Roteiro:
Joe Pimentel e Isabela Veras. Fotografia: Eusélio Gadelha.
Fortaleza: Trio Filmes, 2007. 1 DVD (20 min), son., color., 35 mm.
PARR, Martin; RIEDL, Titus. Retratos pintados. Portland, OR: Nazraeli
Press, 2010.
PINACOTECA do Estado de São Paulo. Interior profundo: Mestre Júlio Santos. São Paulo, 2010. Catálogo.
RIEDL, Titus. Últimas lembranças: retratos da morte, no Cariri, região do
Nordeste Brasileiro. São Paulo: Annablume; Fortaleza: Secult, 2002.
SANTOS, Júlio. Júlio Santos: mestre da fotopintura. Fortaleza: Tempo D’Imagem,
2010.
Olá Dalton,
ResponderExcluirVi seus trabalhos na SP-Arte, e gostaria de conversar com você.
Você tem algum email ou telefone?
Abs,
Greg
Olá Greg!
Excluirmeu email é daltonp.artista@gmail.com
grande abraço!
Dalton Paula