13 de mai. de 2016

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5 de out. de 2014

Retrato Silenciado (Silenced Portrait)

A série Retrato Silenciado é um dos desdobramentos da viagem que realizei com minha companheira ao sertão do Cariri. Partimos de Goiânia/GO e percorremos, de carro, diversas cidades até Fortaleza/CE – foram mais de cinco mil quilômetros rodados. Adentrar novos territórios, de certa forma, introduzia-me ao universo dos retratos pintados. Histórias, prosas, mitos, devoção, sonhos, desejos, deslumbramentos de futuros possíveis, alimento da alma.
           
A fotopintura é uma técnica que se iniciou com uma base fotográfica, geralmente em papel, no qual se retoca a imagem com pigmentos. Essa técnica caiu em desuso em razão do advento e da popularização da fotografia digital, que abriu caminho para novos trabalhos e trocou o pincel por programas de edição de imagem.
           
O surgimento da fotografia trouxe também uma competição com a pintura. Na contemporaneidade, as duas técnicas convivem mutuamente com seus territórios e especificidades. Essas divergências me interessam bastante, pois comecei a trabalhar nas artes pintando, mas a fotografia sempre teve espaço no meu processo artístico.

No início, eu fotografava os assuntos de meu interesse, e, nesse gesto fotográfico, era como se eu estivesse fazendo anotações de imagens para uma reflexão futura, ou seja, era a escrita de algo que não mais poderia ser anotado em outro momento. Tratava-se de um pensamento acerca desse gesto, e, num segundo momento, essas imagens fotográficas dialogavam com minha pintura.

Já nesta investigação sobre fotopintura, refotografo os retratos pintados encontrados nas salas de milagres, peças de ex-votos, onde estão depositadas devoções, fé, agradecimentos, pedidos, curas, sonhos...
           
Minha produção perpassa basicamente a temática do corpo silenciado, e acredito que esse silenciamento seja uma enfermidade. Trabalhar com tais imagens de ex-votos representa, em meu processo artístico, uma possibilidade de cura. Dessa forma, coleciono imagens oriundas das cidades de Trindade/GO, Congonhas/MG, Bom Jesus da Lapa/BA e Juazeiro do Norte/CE. Além dos ambientes privados – as casas de todo o território nacional –, esse material é facilmente encontrado nas rotas das romarias.
           
Retomando a questão da fotografia, a estética do retrato pintado me interessa bastante, com seus fundos chapados, a pose rígida, endurecida, intacta, imobilidade que revela o longo tempo de exposição que outrora era exigido das pessoas para que fossem fotografadas. Penso na pose como uma ação performática de silenciamento.
           
Por outro lado, a pintura manifesta-se pelo retoque pictórico nessas imagens. Surpreendem as possibilidades que essa forma artística alcançou, os complexos usos e sentidos que ela contempla, como nos casos de pessoas já falecidas que “voltam à vida” ao serem retratadas de olhos abertos, ou de viúvas com idade avançada que guardam somente imagens de seus maridos quando jovens – o retrato pintado une essas duas imagens e temporalidades, ou seja, uma senhora com mais de sessenta anos e um jovem de vinte aparentam, assim, ser mãe e filho ou mesmo avó e neto. A fotopintura também proporciona a uma pessoa com poucas posses ser retratada em trajes elegantes, os quais ela normalmente não teria condições de adquirir. 
           
A junção fotografia-pintura multiplicou as possibilidades poéticas e expressões, bem como o alcance da imaginação popular. Antes do advento da versão digital, a fotografia não era tão popular quanto nos dias atuais, principalmente em lugares remotos do interior do país. Nesse sentido, uma imagem de fotopintura assemelhava-se a uma peça de relicário, ocupando lugar reservado e importante no espaço da casa, como se estivesse em um altar. Era algo sagrado, de valor e respeito, que remetia à memória, histórias e saberes do íntimo.
           
Cada situação na qual o retrato pintado é apresentado gera uma situação, seja nas casas, como nas salas de ex-votos, seja em livros, na memória, mas nenhuma delas pode assegurar seu significado, uma vez que as verdades se multiplicam, ganham novos contornos, geram outras possibilidades.
           
A fotografia não é somente uma representação do passado, mas um elemento capaz de reacender a chama da memória e, pelo conhecimento do ontem, lidar com a experiência do hoje, do agora, que tão rapidamente passa e se torna obsoleto. Por isso, vejo na imagem fotográfica essa tão tênue e indissociável relação com as temporalidades da vida e da morte.
           
Ao utilizar a enciclopédia como suporte para as pinturas, exploro as ideias de sistematização e materialização do conhecimento científico presentes em cada livro da coletânea. Assim, crio para cada personagem, e tudo o que traz consigo, uma história de protagonismo e autoria, reelaborada nas capas dessa publicação universal.
           
Referências sobre fotopintura
CÂMARA viajante. Direção: Joe Pimentel. Roteiro: Joe Pimentel e Isabela Veras. Fotografia: Eusélio Gadelha. Fortaleza: Trio Filmes, 2007. 1 DVD (20 min), son., color., 35 mm.
PARR, Martin; RIEDL, Titus. Retratos pintados. Portland, OR: Nazraeli Press, 2010.
PINACOTECA do Estado de São Paulo. Interior profundo: Mestre Júlio Santos. São Paulo, 2010. Catálogo.
RIEDL, Titus. Últimas lembranças: retratos da morte, no Cariri, região do Nordeste Brasileiro. São Paulo: Annablume; Fortaleza: Secult, 2002.
SANTOS, Júlio. Júlio Santos: mestre da fotopintura. Fortaleza: Tempo D’Imagem, 2010.

(Revisão e tradução: Gisele Dionísio da Silva)


Silenced Portrait
The Silenced Portrait series unravels itself from the journey I embarked on, together with my wife, to the hinterland of Cariri, Brazil. We left Goiânia, Goiás state, and drove past several cities before arriving in Fortaleza, Ceará state – a journey spanning more than 5,000 kilometres. Entering new territories introduced me, to a certain extent, to the world of painted portraits. Stories, narratives, myths, worship, dreams, wishes, foresights of possible futures, ways to nurture the soul.

Photo painting is a technique that adopted a photographic basis in its early days, normally on paper, on which the image was retouched with pigments. This technique fell into disuse with the advent and growing popularity of digital photography, which promoted new possibilities of work with photography and replaced the brush with image-editing software.

The rise of digital photography also brought to the fore a competition with painting. In contemporaneity, both techniques coexist with each other’s territories and specificities. These divergences are of great interest to me, given that my first involvement with the arts was through painting, but photography always had a place in my artistic process.

In the early days, I captured topics which interested me, and, through this photographic gesture, it was as if I was taking notes of images for later, i.e. I was writing something which could not be written down in any other instant. It was a particular thought about such gesture and, at a later time, these photographic images established a dialogue with my painting.

In this current investigation of photo painting, I capture once again the painted portraits found in “miracle rooms” (salas dos milagres) – ex-voto offerings, in which people deposit their worship, faith, thanks, wishes, healings, dreams...

My work basically encompasses the theme of the silenced body, and I believe such silence is an illness. Working with ex-voto images represents a healing possibility within my artistic process. Therefore, I have collected images from the cities of Trindade (Goiás), Congonhas (Minas Gerais), Bom Jesus da Lapa (Bahia), and Juazeiro do Norte (Ceará). This material is easily found in pilgrimage routes as well as in private spaces, i.e. homes spread throughout the country.

Back to photography, the aesthetics of the painted portrait is of great interest to me, due to its plain background, the rigid, hardened, intact pose, whose immobility reveals the long exposure people being photographed were submitted to in the early days of photography. I regard pose as a performing act of silence.

On the other hand, painting manifests itself through these images’ pictorial retouch. Surprising are the possibilities which this artistic form has reached, the complex uses and meanings it beholds, as in the case of deceased people who ‘come back to life’ by being portrayed with their eyes open, or in the case of elderly widows who keep only images of their husbands in their youth – the painted portrait unites these two images and temporalities, i.e. an old woman over sixty years old and a young man of twenty appear to be, hence, mother and son or even grandmother and grandson. Photo painting also makes it possible for a poor person to be portrayed in elegant clothes which he/she would not normally be able to afford. 

The photography–painting conjunction has multiplied poetic possibilities and expressions, as well as stretched the reach of popular imagination. Before the advent of its digital version, photography was not as popular as it is nowadays, particularly in remote areas of inland Brazil. Hence, a photo painting resembled a shrine object in those days, occupying a valued and reserved part of the house, as if standing on an altar. It was sacred, valuable, and respectable, and referred to memories, stories, and intimate wisdom.

Each situation in which a painted portrait is presented produces another, be it in houses, in ex-voto rooms, in books or in memories. However, none of them may ensure a portrait’s meaning because truths can be multiplied, gain new contours, generate other possibilities.

Photography is not simply a representation of the past, but an element capable of rekindling the flame of memory and, based on yesterday’s knowledge, deal with the experience of today, of the present, which fleetingly passes and becomes obsolete. That is the reason why I capture in photographic images this slender and indissociable relationship with temporalities of life and death.

By using an encyclopedia as supporting material for the paintings, I explore the notions of systematization and materialization of scientific knowledge which mark each book in the collection. Hence I create for each character, and everything he/she brings along, a story of protagonism and authorship, reformulated on the covers of this universal publication.
           
Works on Photo Painting
CÂMARA viajante. Direção: Joe Pimentel. Roteiro: Joe Pimentel e Isabela Veras. Fotografia: Eusélio Gadelha. Fortaleza: Trio Filmes, 2007. 1 DVD (20 min), son., color., 35 mm.
PARR, Martin; RIEDL, Titus. Retratos pintados. Portland, OR: Nazraeli Press, 2010.
PINACOTECA do Estado de São Paulo. Interior profundo: Mestre Júlio Santos. São Paulo, 2010. Catálogo.
RIEDL, Titus. Últimas lembranças: retratos da morte, no Cariri, região do Nordeste Brasileiro. São Paulo: Annablume; Fortaleza: Secult, 2002.
SANTOS, Júlio. Júlio Santos: mestre da fotopintura. Fortaleza: Tempo D’Imagem, 2010.


(English version: Gisele Dionísio da Silva)














Retrato Silenciado
Dalton Paula
Óleo sobre livro
425 x 28,5cm
Foto: Paulo Rezende
Apoio: Sé Galeria
Coleção Barella






























13 de abr. de 2014