Por Marcelo
Mari*
A obra de Dalton, intitulada sugestivamente de Transeuntes remete
às condições e aos estados do corpo na contemporaneidade. Os homens, seus
corpos e as coisas em geral estão condicionados pela alternância constante
entre os estados de repouso e de movimento. Tudo indica que a distância entre
esses dois estados é muito sutil, poder-se-ia arriscar a dizer que é pífia,
embora produza diferenças abismais entre esse ou aquele que a experimenta.
Esses estados podem ser averiguados pelo uso e pelo desgaste que o corpo
imprime nos objetos; são as marcas deixadas pelo corpo, agora ausente, mas que
indicam sua própria condição de existência. Muita vez, diz-se que o próprio
corpo tem suas limitações, que cada homem anda ou é impedido de andar tanto por
motivo de mal súbito ou de defeito físico como por imposição dos outros;
todavia é justamente esta imposição que permite desvelar, para além da condição
natural do corpo, sua condição social. Mesmo na redução radical do corpo à sua
matriz natural ou fisiológica, observa-se que a sociedade impõe ao corpo uma
condição para sua existência na sociedade; o corpo é, por assim dizer, moldado
conforme uma prerrogativa produzida socialmente.
À maneira de Duchamp, a cadeira de rodas preta e o tapete de couro
formado a partir de botas descosturadas e recosidas foram desfuncionalizados e
isso bastaria para transformá-lo em objeto de arte? Com a operação duchampiana,
esses objetos outrora utilitários transformar-se-iam em objetos de arte e
aparentemente possuiriam a mesma qualidade do objeto sem função, par
excelence, do objeto de arte. Ainda que a cadeira e os retalhos de couro
recosidos sejam premissa inicial de investigação sobre a sensibilidade
contemporânea, nem a operação conceitual nem a condição final de objetos
desfuncionalizados garantem sua transformação em objeto de arte, porque a
operação duchampiana de sentido não pode mais ser repetida infinitas vezes no
contexto da arte atual sem que perca sua validade como experiência histórica. A
obra de Dalton apresenta esse desafio: ou aceitamos que toda desfuncionalização
produz um objeto estético e daí concluir que toda experiência estética produz
um objeto de arte e por extensão que tudo pode ser arte, ou entendemos a
apropriação de Dalton como a elaboração da matriz duchampiana em dois sentidos
apresentados juntos nesta instalação-objeto: cadeira de rodas e tapete de botas
pretas descosturadas e recosidas.
Transeuntes se vale da tensão entre os dois objetos, tensão entre dois
momentos distintos de sentido: um de apropriação de objeto pronto (cadeira) e
outro de evidente recriação dos objetos (botas). Dalton apresenta a tensão sem
resolvê-la: a recriação ou transformação dos sapatos em um grande tecido cosido
dá o salto para fora da lógica da mera apropriação. Da cadeira até o tapete de
botas temos dois momentos para a solução da operação duchampiana: o artista
ultrapassa na realização manual do tapete o mero expediente de apropriação de
objetos prontos pela arte contemporânea dos países centrais; do objeto cadeira
resignificado passamos ao objeto tapete recriado. Dalton vai além da mera
apropriação e apresenta as botas recosidas como materialização do sentido
imposto pela resignificação do objeto meramente apropriado. Esses dois momentos
de sentido da operação duchampiana estão presentes lado a lado na obra instalação-objeto
de Dalton. Como diria Tadeu Chiarelli1 é a partir desse recurso
e insistência no feito-à-mão que a arte brasileira cria seu espaço de
diferenciação em relação aos centros artísticos norte-americano e europeu no
cenário da internacionalização da arte contemporânea. Algo que nos diferencia
da experiência histórica duchampiana e dos artistas coetâneos das outras partes
do mundo.
A cadeira de rodas faz parte da investigação visual do artista –
iniciada na pintura a óleo – com a pintura de tronos para Cosme e Damião.
Motivo de pintura do Artista, que ganhou prêmio na Bienal Naif de Piracicaba,
interior Paulista. Cosme e Damião, os dois irmãos, o mítico número dois
presente em uma miríade de mitologias da Antiguidade, são representados por
Dalton como príncipes africanos que ocupam, em sua pintura, lado a lado dois
tronos. Pintura colorida que explora o contraste entre o verde e o vermelho e
faz figurar dois jovens negros nos tronos. A partir dos tronos, Dalton executa
uma série de desenhos a nanquim e outros materiais em papéis diversos e de
vários formatos na cor branca e preta. É nesse momento que surge o trono
transmutado em cadeira de rodas. Os esboços e as cadeiras desenhadas e
finalizadas prezam pela economia de traços e revelam a força da estruturação
geométrica do desenho.
Estruturação geométrica do objeto no desenho e a própria constituição do
objeto geométrico fabricado em escala industrial se confundem na lógica
operante da Modernidade. A cor branca e a preta são dominantes nos estudos e
desenhos acabados. Dalton parte desses desenhos para chegar na realização de
sua presente instalação-objeto. Dos estudos e dos desenhos em papel, Dalton
chegou no contrataste cromático entre o preto da cadeira de rodas e do tapete
preto de couro com o branco do entorno espacial, o branco pressuposto da
instituição-museu, o Cubo Branco da Modernidade. Até mesmo a arte contemporânea
não pode prescindir desse confronto com a instituição que simboliza a arte
moderna e seu espaço branco, asséptico.
Outra pressuposição conceitual, porém visível, é a ausência do corpo
como presença nas marcas de uso dos objetos. Transeuntes incide sobre o
registro da passagem do homem pelo mundo, através do uso de objeto
aparentemente cotidianos, banais. A obra nos faz pensar sobre a condição da
vida e do corpo na sociedade contemporânea: a tecno-ciência atua cada vez mais
sobre o corpo humano e não se trata da implantação de código de barras ou de
chips nos cérebros das pessoas. A tecno ciência faz parte do aparato de
controle dos corpos, seres humanos estão reduzidos a corpos, suas expectativas
diante da vida são controladas pelo aparato técnico-simbólico existente nas
sociedades atuais. Um exemplo disso é a corrida desenfreada para reconstrução
do próprio corpo, que é averiguada pelo numero massivo de pessoas que ingressaram
nos últimos anos em academias esportivas ou que vão reconstruir seus corpos em
clínicas de cirurgia plástica.
Diga-se de passagem, que essas pessoas são obrigadas a viver em estado
de ansiedade constante e de insatisfação. Sintomas necessários para que elas
estejam integradas na nova ordem mundial, para que seja consumidoras ávidas
pelo último lançamento no mercado ou pelo nariz da vez. Essa reconstrução
constante do próprio corpo, que tenta se adequar aos padrões estabelecidos,
transformou até mesmo a medicina no seu avesso. A medicina da Grécia Antiga, do
juramento de Hipócrates, visava proporcionar equilíbrio em estados de
desequilíbrio, de desmedida, por isso a medicina seguia o que os Latinos
chamaram de doutrina dos ânimos. O médico oferecia ao paciente a partir do
equilíbrio dos contrários: o quente e o frio, o seco e o úmido, etc. Ora, a
medicina de hoje é instrumento para satisfação de necessidades produzidas pelo
mercado e para realização da desmedida e do desequilíbrio no individuo. Nesse
controle do corpo, estudado a partir de Foucault como biopoder, está o local da
presença e da ausência do corpo contemporâneo. A investigação sobre seu
significado é fundamental não somente para as artes, mas para a teoria social.
Dalton nos apresenta as marcas do corpo e os objetos utilizados pelo corpo, une
os fragmentos de realidade e impõe a ética como princípio de engendramento da
arte hodierna.
Notas
1CHIARELLI, D. T. Colocando dobradiças
na arte contemporânea In Projeto Leonilson (http://www.projetoleonilson.com.br/textos.php?pid=5)
* Marcelo Mari é Doutor em Filosofia pela
Universidade de São Paulo (2006), e professor da Faculdade de Artes Visuais da
Universidade Federal de Goiás.
Dalton
Paula
Transeuntes
B
Coturno,
graxa, cola
90 x 75 x
65 cm
Foto:
François Calil
2009
Dalton
Paula
Transeuntes
A
Cadeira de
rodas, coturno, linha, graxa
225 x 135 x
90 cm
Foto:
François Calil
2009
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