8 de mai. de 2012

“Transeuntes” e o corpo na contemporaneidade


                   Por Marcelo Mari* 

A obra de Dalton, intitulada sugestivamente de Transeuntes remete às condições e aos estados do corpo na contemporaneidade. Os homens, seus corpos e as coisas em geral estão condicionados pela alternância constante entre os estados de repouso e de movimento. Tudo indica que a distância entre esses dois estados é muito sutil, poder-se-ia arriscar a dizer que é pífia, embora produza diferenças abismais entre esse ou aquele que a experimenta. Esses estados podem ser averiguados pelo uso e pelo desgaste que o corpo imprime nos objetos; são as marcas deixadas pelo corpo, agora ausente, mas que indicam sua própria condição de existência. Muita vez, diz-se que o próprio corpo tem suas limitações, que cada homem anda ou é impedido de andar tanto por motivo de mal súbito ou de defeito físico como por imposição dos outros; todavia é justamente esta imposição que permite desvelar, para além da condição natural do corpo, sua condição social. Mesmo na redução radical do corpo à sua matriz natural ou fisiológica, observa-se que a sociedade impõe ao corpo uma condição para sua existência na sociedade; o corpo é, por assim dizer, moldado conforme uma prerrogativa produzida socialmente.

À maneira de Duchamp, a cadeira de rodas preta e o tapete de couro formado a partir de botas descosturadas e recosidas foram desfuncionalizados e isso bastaria para transformá-lo em objeto de arte? Com a operação duchampiana, esses objetos outrora utilitários transformar-se-iam em objetos de arte e aparentemente possuiriam a mesma qualidade do objeto sem função, par excelence, do objeto de arte. Ainda que a cadeira e os retalhos de couro recosidos sejam premissa inicial de investigação sobre a sensibilidade contemporânea, nem a operação conceitual nem a condição final de objetos desfuncionalizados garantem sua transformação em objeto de arte, porque a operação duchampiana de sentido não pode mais ser repetida infinitas vezes no contexto da arte atual sem que perca sua validade como experiência histórica. A obra de Dalton apresenta esse desafio: ou aceitamos que toda desfuncionalização produz um objeto estético e daí concluir que toda experiência estética produz um objeto de arte e por extensão que tudo pode ser arte, ou entendemos a apropriação de Dalton como a elaboração da matriz duchampiana em dois sentidos apresentados juntos nesta instalação-objeto: cadeira de rodas e tapete de botas pretas descosturadas e recosidas.

Transeuntes se vale da tensão entre os dois objetos, tensão entre dois momentos distintos de sentido: um de apropriação de objeto pronto (cadeira) e outro de evidente recriação dos objetos (botas). Dalton apresenta a tensão sem resolvê-la: a recriação ou transformação dos sapatos em um grande tecido cosido dá o salto para fora da lógica da mera apropriação. Da cadeira até o tapete de botas temos dois momentos para a solução da operação duchampiana: o artista ultrapassa na realização manual do tapete o mero expediente de apropriação de objetos prontos pela arte contemporânea dos países centrais; do objeto cadeira resignificado passamos ao objeto tapete recriado. Dalton vai além da mera apropriação e apresenta as botas recosidas como materialização do sentido imposto pela resignificação do objeto meramente apropriado. Esses dois momentos de sentido da operação duchampiana estão presentes lado a lado na obra instalação-objeto de Dalton. Como diria Tadeu Chiarelli1 é a partir desse recurso e insistência no feito-à-mão que a arte brasileira cria seu espaço de diferenciação em relação aos centros artísticos norte-americano e europeu no cenário da internacionalização da arte contemporânea. Algo que nos diferencia da experiência histórica duchampiana e dos artistas coetâneos das outras partes do mundo.

A cadeira de rodas faz parte da investigação visual do artista – iniciada na pintura a óleo – com a pintura de tronos para Cosme e Damião. Motivo de pintura do Artista, que ganhou prêmio na Bienal Naif de Piracicaba, interior Paulista. Cosme e Damião, os dois irmãos, o mítico número dois presente em uma miríade de mitologias da Antiguidade, são representados por Dalton como príncipes africanos que ocupam, em sua pintura, lado a lado dois tronos. Pintura colorida que explora o contraste entre o verde e o vermelho e faz figurar dois jovens negros nos tronos. A partir dos tronos, Dalton executa uma série de desenhos a nanquim e outros materiais em papéis diversos e de vários formatos na cor branca e preta. É nesse momento que surge o trono transmutado em cadeira de rodas. Os esboços e as cadeiras desenhadas e finalizadas prezam pela economia de traços e revelam a força da estruturação geométrica do desenho.

Estruturação geométrica do objeto no desenho e a própria constituição do objeto geométrico fabricado em escala industrial se confundem na lógica operante da Modernidade. A cor branca e a preta são dominantes nos estudos e desenhos acabados. Dalton parte desses desenhos para chegar na realização de sua presente instalação-objeto. Dos estudos e dos desenhos em papel, Dalton chegou no contrataste cromático entre o preto da cadeira de rodas e do tapete preto de couro com o branco do entorno espacial, o branco pressuposto da instituição-museu, o Cubo Branco da Modernidade. Até mesmo a arte contemporânea não pode prescindir desse confronto com a instituição que simboliza a arte moderna e seu espaço branco, asséptico.

Outra pressuposição conceitual, porém visível, é a ausência do corpo como presença nas marcas de uso dos objetos. Transeuntes incide sobre o registro da passagem do homem pelo mundo, através do uso de objeto aparentemente cotidianos, banais. A obra nos faz pensar sobre a condição da vida e do corpo na sociedade contemporânea: a tecno-ciência atua cada vez mais sobre o corpo humano e não se trata da implantação de código de barras ou de chips nos cérebros das pessoas. A tecno ciência faz parte do aparato de controle dos corpos, seres humanos estão reduzidos a corpos, suas expectativas diante da vida são controladas pelo aparato técnico-simbólico existente nas sociedades atuais. Um exemplo disso é a corrida desenfreada para reconstrução do próprio corpo, que é averiguada pelo numero massivo de pessoas que ingressaram nos últimos anos em academias esportivas ou que vão reconstruir seus corpos em clínicas de cirurgia plástica.

Diga-se de passagem, que essas pessoas são obrigadas a viver em estado de ansiedade constante e de insatisfação. Sintomas necessários para que elas estejam integradas na nova ordem mundial, para que seja consumidoras ávidas pelo último lançamento no mercado ou pelo nariz da vez. Essa reconstrução constante do próprio corpo, que tenta se adequar aos padrões estabelecidos, transformou até mesmo a medicina no seu avesso. A medicina da Grécia Antiga, do juramento de Hipócrates, visava proporcionar equilíbrio em estados de desequilíbrio, de desmedida, por isso a medicina seguia o que os Latinos chamaram de doutrina dos ânimos. O médico oferecia ao paciente a partir do equilíbrio dos contrários: o quente e o frio, o seco e o úmido, etc. Ora, a medicina de hoje é instrumento para satisfação de necessidades produzidas pelo mercado e para realização da desmedida e do desequilíbrio no individuo. Nesse controle do corpo, estudado a partir de Foucault como biopoder, está o local da presença e da ausência do corpo contemporâneo. A investigação sobre seu significado é fundamental não somente para as artes, mas para a teoria social. Dalton nos apresenta as marcas do corpo e os objetos utilizados pelo corpo, une os fragmentos de realidade e impõe a ética como princípio de engendramento da arte hodierna.

Notas
1CHIARELLI, D. T. Colocando dobradiças na arte contemporânea In Projeto Leonilson (http://www.projetoleonilson.com.br/textos.php?pid=5)

* Marcelo Mari é Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (2006), e professor da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás. 

Dalton Paula
Transeuntes B
Coturno, graxa, cola
90 x 75 x 65 cm
Foto: François Calil
2009





Dalton Paula
Transeuntes A
Cadeira de rodas, coturno, linha, graxa
225 x 135 x 90 cm
Foto: François Calil
2009




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